terça-feira, 6 de dezembro de 2016

HISTÓRIA DE VIDA: ISABEL SANTANA POR ELA MESMA

Ato I

A adolescência
Fase das interrogações, das indagações, da busca incessante por uma identidade. Época em que, pelas necessidades, trocávamos a escola pelo trabalho. Dessa forma, os estudos noturnos com aulas desinteressantes, foram a causa da minha desistência e o último ano do ensino médio foi substituído pelo namoro.
Estudar deixara de fazer parte dos meus planos, afinal, outras prioridades surgiram. A maior delas passou a ser o casamento a partir do momento em que, o sentimento da paixão, o fascínio e a atração nos uniu.
Nós nos casamos e, diferente de muitas mulheres, eu nada tinha a reclamar, aliás, não tenho até hoje. Nossa prioridade sempre foi à atenção, o respeito, o cuidado e a liberdade com responsabilidade. Para nós essa é a base da construção do amor.
No nosso primeiro ano de casados, tudo corria perfeitamente bem, até que ele adoeceu. Sofreu uma hemorragia digestiva, foi internado com urgência no Hospital das Clínicas e também foi desenganado pelos médicos.
Eu passei dias e  noites no hospital com um vazio dentro de mim sem poder estar ao lado dele. Várias vezes, sentada ao chão, chorava com medo de perder o grande amor da minha vida. As lembranças de tudo que vivemos até ali, permaneciam vivas em mim e a cada relatório médico, ouvia que a situação dele era crítica e que eu aceitasse aquela realidade. Desesperada, voltei ao chão e, com lágrimas, suplicava à Deus que não o levasse, que não o tirasse de mim.
Fiquei desorientada e passei dias sem sono e sem fome, apenas com a esperança de que ele reagisse. Acompanhava todos os procedimentos médicos e num dado momento, os exames foram dados como satisfatórios. A partir daí não corria mais risco de vida e eu pude ficar ao seu lado, acariciar o seu rosto e declarar o quanto eu o amava, mesmo sem ouvir dele nenhuma palavra. No processo da sua recuperação, foi transferido para um hospital do nosso convênio e, em alguns dias, estava de volta à nossa casa.
No decorrer da vida, nos empenhamos e crescemos juntos e nos momentos das nossas maiores perdas, minha mãe, meu pai e meu sogro, a base que construímos nos ajudou a enfrentar a aflição e o sofrimento.
Tempos mais tarde, numa confraternização de final de ano, conheci uma senhora e fiquei indignada com sua história de vida. Sofria violência doméstica e psicológica por parte do marido e, por não conhecer os seus direitos, acreditava que aquela seria a personalidade dele.
Resolvi, então, deixar a minha zona de conforto, voltar aos estudos e buscar uma formação para oferecer ajuda. Fiz minha matrícula na EJA, afinal, nunca é tarde para se aprender e foi assim que passei a enfrentar novos desafios.
Presenciei desrespeito aos professores, usuários e tráfico de drogas, alunos e professores desmotivados, entretanto, nada interferiu no meu objetivo. Por outro lado, encontrei professores determinados a ensinar, a apresentar-nos novos caminhos, e então, o meu sentimento sempre foi gratidão, afinal, mesmo diante de tantas dificuldades, eles não desistiram do árduo trabalho e por esse motivo, pude experimentar durante esse tempo, o acolhimento de cada um e no término do período, planejar o meu ingresso à faculdade.


Ato II

O início de tudo
Entre tantas dificuldades, surge o sonho, e assim, começa um novo espetáculo. A faculdade transformou-me por completo. Conceitos, preconceitos, questionamentos. O encontro do eu com outras possibilidades. Muitas foram as diferenças, os rancores, os desafetos, porém, cada situação vivida, um aprendizado.
O curso de Letras. No meu interior, o que representa o Estudo das Letras?
Retrata e traduz a minha história, meus silêncios, sentimentos intensos, saudades. Lembranças que permaneceram guardadas desde o primeiro despertar, desde o primeiro desejo de no caminho das letras navegar.
Fui desencorajada, visto que, escolhi o que não estava ao meu alcance e ouvi que esse caminho somente os filhos dos ricos atravessariam. Então, eu desisti!
Porém...
Minha vida estava escrita nas estrelas e aprendi que pelo meu amor, seja pelo que for, posso ouvi-las e entendê-las. Permiti que a  minha vida seguisse novos rumos, que novos horizontes fossem vistos, que os desafios e os limites fossem ultrapassados, que os medos fossem vencidos e que, o amor, despontasse do profundo da minha alma como uma melodia que relembra um tempo que não volta mais.
É a ordem da vida, no entanto, o sonho não morreu, apenas adormeceu e eu, o segurei novamente nas mãos e aprendi que há liberdade na poesia, há encanto nos sonhos, há um convite diante do universo, há um devorar de consciências, há uma verdade absoluta transformada em indignação, há um recomeço, há uma nova inspiração e um ardor produzido nessa trajetória do aprender e do ensinar. Vivi o encontro das lágrimas com o riso, do medo com a coragem, do sonho com a realidade, do empenho com o resultado. O ensino que nasce todos os dias, que produz conhecimento, que transforma uma história, que traduz emoções e sentimentos, que frutifica palavras, que provoca paixão e que gera amor.
Como eu descobri tudo isso?
Durante o curso, tudo seguia normalmente, até que, nos foi apresentado pelo professor Neto o livro “Aula de Português, encontro & interação” – Irandé Antunes. Um ensino que trata da realidade, do convívio do aluno e que ultrapassa os muros da escola. Relembrei então, a minha história de criança, a época em que, por não aprender a escrita, apanhava da professora.
Assustador não é mesmo?
Porém, o pior de tudo foi confrontar a minha realidade.
Eu não tinha conhecimento de que, minha vida havia se perdido após um estado de luto. Há algum tempo, eu sepultara o grande amor da minha vida, o meu pai. Naquele dia, as pessoas saíam lentamente, em silêncio, enquanto eu pensava que tudo aquilo era uma brincadeira de mau gosto. Um absurdo, mas que no luto é o comum daquele que ama. Todos se foram e chegou o silêncio, o frio e a dor.
Demorei a aceitar, afinal, essa dor também é física. Ela rasga de dentro pra fora e deixa o corpo e a alma abatidos de cansaço. Após muitos dias sem dormir, dormi sem querer. Simplesmente o corpo desliga porque sabe que não suporta. A dona morte me roubou a ponto de me deixar vazia. De tudo que restou em mim, o que mais se sobressaiu foi a dor. Muitos foram solidários ao meu sofrimento , era preciso força para continuar e audácia para dar valor à própria vida quando a pessoa com quem você sonhou em dividir tantas coisas não está mais ali.
A vida não para em prol do nosso sofrimento e o mundo não deixa de girar para sofrermos. Tudo permanece como está e segue o fluxo normal. O tempo é curto e o verdadeiro amor é raro. Deus existe. Amar exige compaixão e se para ter a história que eu tive com meu pai exigia carregar essa dor, eu a carregaria mil vezes sem a menor dúvida, afinal, com o luto eu aprendi a jamais me arrepender de amar. É o amor. É o amor de pai e filho.
Nesse meio tempo, algo surpreendente aconteceu comigo. Eu não tinha conhecimento de que havia sido sepultada com o meu pai e estava morta. A minha história é de transformação. Eu voltei à vida e tudo passou a fazer sentido novamente, afinal, a educação tem esse poder, o professor tem esse poder nas suas estratégias e na sua maneira de ensinar.
Por isso, para ser um professor de verdade, não há necessidade de expor o seu currículo e nem mesmo de agregar um personagem, visto que, nada disso tem valor. O verdadeiro professor precisa gostar de conversar, uma vez que, sem diálogo, o conhecimento não acontece. É essencial saber que a ironia e o sarcasmo não são um bom caminho a seguir, pois na educação, eles nada constroem. O verdadeiro professor é aquele que observa e alcança através do seu potencial, da sua capacidade, das suas estratégias e da sua transparência. O verdadeiro professor é gente como a gente.
A minha gratidão ao professor Neto que me ajudou a sair dessa condição de dor e sofrimento que nada é capaz de atenuar. Você professor é o responsável por essa transformação na minha vida.


Ato III

A grande surpresa. O reconhecimento e o carinho da professora
“Isabel
Aluna incrível!
Sua dedicação, esforço e sede de conhecimento chamaram a minha atenção.
Com a sua meiguice, humildade e inteligência, ela me conquistou, deixando de ser uma simples aluna, mas também uma grande amiga, por ser uma pessoa tão dócil e compreensiva. 
Sinto-me honrada por ter participado dessa fase tão importante da sua vida! Tê-la como aluna, foi para mim, um presente de Deus, pois ela nos faz enxergar que nem tudo está perdido, mas que ainda vale a pena persistirmos nessa nossa missão que, embora árdua, pessoas como a Isabel, tornam a nossa caminhada mais leve e prazerosa”.

Marilene,
Professora de Língua Portuguesa.


A Faculdade!
O entrar para uma instituição de ensino superior é viver uma experiência de vida e, diferentemente da escola, ninguém nos obriga a assistir às aulas ou mesmo a comparecer nas atividades. É minha a responsabilidade em buscar autonomia e adquirir conhecimento. Nesse acesso, há o amadurecimento, o engajamento e o encarar sem filtros, nossos próprios defeitos ou dificuldades. Embora nunca devamos deixar de ser quem somos na nossa essência e integridade, alguns pontos de vista irão mudar a nossa maneira de pensar e ver o mundo. É um caminho lento, uma constante adaptação, um deslumbre.
Cada período exige uma maior entrega, e hoje, no quinto semestre, já concluí todo o meu período de estágio e fui convidada pela coordenadora da escola a participar de um projeto de reforço com crianças que possuem dificuldades de leitura e escrita. Procuro atendê-los em suas necessidades a partir de cada realidade, e assim, gerar situações de aprendizagem reais e significativas.
Os desafios são muitos e o espaço educativo necessita estar vinculado ao mundo real porque é essencial formarmos homens investigadores, autônomos, conscientes e participativos na sociedade e não acumuladores de conhecimentos.
Esta é a minha história de vida, uma história de transformação e de conquistas.

Isabel Santana

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